sábado, 5 de maio de 2018

A tragédia do cotidiano


Os conteúdos psicológicos do homem hodierno são de aturdimento, instabilidade emocional, insegurança pessoal, levando-o à perda do senso trágico.

Desestruturados pelos choques comportamentais e esma­gados pelo volume das informações impossíveis de serem digeridas, as massas eliminam arquétipos ou os transferem para indivíduos imaturos portadores de fragilidade psicoló­gica, aterrando-os, soterrando-os, na avalanche das necessi­dades mescladas com os conflitos existenciais.

Simultaneamente, desaparecem os mitos ancestrais indi­viduais e a cultura devoradora investe contra os outros, os coletivos, deixando as criaturas desprotegidas das suas cren­ças, dos seus apoios psicológicos.

A fé cega substituída pela ditadura da razão, destruiu ou substituiu os mitos nos quais se sustentavam os homens, apre­sentando outros, igualmente frágeis, que novamente sofrem a agressão dos valores contemporâneos.

A consciência coletiva, herdeira do choque dos opostos, do ser e do não ser, da coragem e do medo, do homem e da mulher, não sobrevive sem a segurança mítica.

Os seus arquétipos, multimilenarmente estruturados na convicção mitológica, alternam a forma de sobrevivência, transferindo-se os mitos deificados, porém sobreviventes, na sua profundidade psicológica, a todos os golpes mortais que lhe foram desferidos através dos tempos.

Ressuscitam, não obstante, disfarçados em novos mode­los, porém, ainda dominadores, prometendo glórias e casti­gos, prazeres e frustrações aos seus apaniguados, conforme o culto que deles recebam.

Assim, ao lado da violência que se espraia dominadora, vicejam religiões apressadas, salvadoras, na sua ingenuidade mítica, arrastando multidões desprevenidas e sem esclareci­mento que, fracassadas, no contubérnio social, ali se refugi­am, cultuando o paraíso eterno que lhes está reservado como prêmio ao sofrimento e ao desprezo de que se sentem objeto pela cultura consumista e desalmada.

A auto-realização pelo fanatismo mantém os bolsões da miséria sócioeconômica, por não trabalhar o idealismo laten­te no homem, a fim de que transforme os processos gerado­res da desgraça atual em realização pessoal e felicidade, na Terra, mesmo.

De certa maneira, o arrebanhar das multidões para as cren­ças salvadoras diminui, de alguma forma, o volume da vio­lência, que irrompe, paralelamente, porqüanto, sem o mito da salvação pela fé, toda essa potencialidade seria canaliza­da na direção da agressividade destruidora.

A agressividade salvacionista a que dá lugar, embora os prejuízos éticos e sociais que engendra, acalma os conteúdos psicológicos desviando os sujeitos dos crimes que poderiam cometer.

O mito da violência, por sua vez, nascido nos porões do submundo da miséria sócioeconômico-moral e graças à eclo­são das drogas em uso abusivo, engendra o símbolo da força, do poder, do estrelismo, no campeonato da aventura e da bra­vata, exibindo as heranças atávicas da animalidade primitiva ainda predominante no homem.

Toma-se pela força o que deveria ser dado pela fraterni­dade, através do equilíbrio da justiça social e dos deveres humanos, em solidário empenho pela promoção dos indiví­duos, dignos de todos os direitos à vida que apenas alguns desfrutam.

A tragédia do cotidiano se apresenta nas mil faces da vi­olência que se mescla ao comportamento geral, muitas vezes disfarçando-se até em formas de submissão rebelde e humildade-humilhante, que descarregam suas frustrações adquiri­das ao lado dos mais fortes, no dorso desprotegido dos mais fracos.

Os conteúdos psicológicos, mantenedores do equilíbrio, fragmentam-se ao choque do cotidiano agitado e desestrutu­ram o homem que se asselvaja, ou foge para a furna sombria da alienação, considerando-se incapaz de enfrentar a convi­vência difícil do grupo social, igualmente superficial, inte­resseiro, despreparado para a conjuntura vigente.

Graças a isso, os indivíduos fracassam ou enfermam, atri­tam ou debandam enquanto os crédulos ressuscitam os mitos das velhas crendices de males feitos, de perseguições da in­veja, do ciúme e do despeito, ou arregimentam argumentos destituídos de lógica para explicarem as ocorrências malsu­cedidas, danosas…

Certamente, sucedem tais perseguições; busca-se o mal­fazer; campeiam as paixões inferiores que são pertinentes ao homem, ainda em estágio infantil da sua evolução, sem que seja mau.

A sua aparente maldade resulta dos instintos agressivos ainda não superados, que lhe predominam em a natureza ani­mal, em detrimento da sua natureza espiritual.

Em toda e qualquer tragédia do cotidiano, ressaltam os componentes psicológicos encarregados da desestruturação do homem, nesse processo de individuação para adquirir uma consciência equilibrada, capaz de proporcionar-lhe paz, saú­de, realização interior, gerando, no grupo social, o equilíbrio entre os contrários e a satisfação real da convivência não com­petitiva, no entanto cooperativa.